Quando chega junho, lembro imediatamente do quanto eu odiava festa junina. Hoje não. Cago para as danças, para os santos, para as roupas xadrezes, mas aproveito a época para encher a barriga do melhor tipo de comida que eu poderia desejar. Especialmente pamonha. Mas já odiei festa junina a ponto de querer que o mês de junho simplesmente desaparecesse. Traumas passados.
Foi na primeira série (que hoje em dia não é mais primeira série, é segundo ano ou algo assim) que eu me meti na roubada de participar da quadrilha da escola. Fui metida, na verdade, porque quando você está na primeira série você não tem escolha. Eu estava até empolgada, ensaiava quase todo dia no horário de aula e ia ganhar uma roupa nova para me apresentar.
O dia da apresentação. Tudo ensaiadinho, eu com minha sainha rodada de caipira, meus pais na plateia. Nada podia dar errado. Só que deu. A música já estava para começar quando a professora (Tia Andrea, ainda lembro) trouxe pelo braço um menino que eu nunca tinha visto na vida para ser meu par. Ela explicou que o meu par, com quem eu tinha ensaiado todos esses dias, não viria e eu teria que dançar com aquele menino. Ok. Nada de mais. I can handle it.
Fui dar as mãozinhas para o menino-substituto, para começarmos a dançar, e ele simplesmente se recusou. Puxou as mãos dele, ficou emburrado e tentou dizer para a Tia: “eu não quero dançar com ela! Ela não é meu par!” Então virou as costas para mim e simplesmente foi embora. Foi. Embora. A música já estava rolando e eu estava sozinha. Sem par não dava para dançar. Eu estava fodida.
Ainda hoje não acredito no quanto eu, com aquela idade, consegui raciocinar e agir tão rápido. Mais que depressa, peguei (ou melhor, roubei) o menino do lado, tomei-o pela mão e voltei a dançar COMO SE NADA TIVESSE ACONTECIDO. A minha vizinha da quadrilha, a que ficou sem par, ficou parada sem acreditar que em um momento ela estava fazendo tudo certinho, como o ensaiado, e no outro estava sozinha. Ninguém avisou para ela que a quadrilha era um faroeste sem lei, um jogo sem regras, uma terra de ninguém. Pode ter certeza que ali, naquela fração de segundos, aquela garota teve um vislumbre de que o mundo, meu amor, é uma selva cheia de animais selvagens. Abriu o berreiro.
A Tia, que ficou tão sem reação quanto todos ali (inclusive o menino que roubei, cuja única reação possível foi dançar comigo como se estivesse no automático) puxou a menina sem par, aos prantos, para ver se conseguia arrumar alguém para ela dançar. Nem sei se conseguiu, apenas fiquei grata por tê-la tirado da minha vista.
O forró acabou, vieram as palmas. Voltei correndo, toda orgulhosa, claro, para onde meus pais assistiam à apresentação. Esperava os parabéns, porque tinha certeza de que tinha dançado direitinho, os ensaios me levaram à perfeição. Mas fui recebida com risadas. Não entendi. “Como é que você faz um negócio desses, menina? Roubar o par da coleguinha?” Eu não sabia nem como me justificar. Só então percebi o quanto eu tinha sido ridícula e fiquei com tanta vergonha que só queria afundar minha cara em um pedação de algodão doce.
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Sou uma envergonhada. Faço e digo cada coisa que, às vezes, no segundo seguinte, já me mata de vergonha. Depois de horas, dias, semanas, continuo pensando naquele momento constrangedor e tenho vontade de me desintegrar, de chorar agachada no chão, de arrancar um pedaço do meu braço a mordidas, de bater a cabeça na parede de tanta vergonha. “Viu? Quem mandou não ficar calada? Falou merda!”
Tenho vergonha até de dizer que tenho tanta vergonha. Mas a minha vida é uma sucessão de gafes e constrangimentos que tento administrar da melhor forma possível para seguir adiante para a próxima vergonha que vou passar.
Toda vez que eu passo por uma vergonha retumbante, eu me lembro do episódio da festa junina. Apenas para sentir mais vergonha, como se, atingindo um nível máximo no termômetro da vergonha, ela fosse passar automaticamente. Apenas para eu sentir que sempre fui um desastre e não seria ali, naquela entrevista, naquele jantar ou naquela saída de fim de semana que seria diferente.
Mas o negócio é que eu me lembro do episódio da festa junina. E aí percebo que as coisas mais incríveis que já fiz (como roubar o menino da coleguinha) foi quando eu não estava me preocupando com a tal vergonha. Porque passar vergonha é exatamente isso: algo que passa.
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Fotografia da Capa: Aris Sánchez // Flickr Creative Commons