Não sei se são os longos períodos de seca que nos fazem esquecer, mas cada vez que chove parece que é a primeira vez. As pessoas reclamam das ruas alagadas, lamentam não poderem sair ao ar livre, ficam abismadas com os desastres e acidentes causados pela chuva, ficam apreensivas com a previsão do tempo para o fim de semana e veem com alívio os vendedores de guarda-chuva nas calçadas.
Cada chuva ganha a importância de um evento único, vira assunto com desconhecidos, vira pauta no noticiário da tevê, vira motivo de preocupação para os governantes.
Quando para de chover e as ruas secam, é como se nunca tivesse chovido. É vida que segue.
Não estava chovendo quando cheguei à conclusão de que, no grande esquema das coisas, a nossa própria existência é essa chuva passageira, com a (óbvia) diferença de que, depois que para, ela não volta a chover. Enquanto existimos, damos grande importância a cada pequeneza que envolve a nossa existência, seguimos as regras como se o mundo dependesse disso e brigamos por coisas que nem vão mais existir daqui a dez anos. Estamos aqui criando, falando coisas, fazendo filhos, fazendo guerras, provocando desastres e mudando a geografia do planeta como uma tormenta que em breve vai passar. Para o universo, vai ser como um chuvisco de verão, um pingo inconveniente. Mas vai passar.
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Quando eu era nova demais para saber das coisas e ainda não tinha aprendido que temos coração, intestino, cérebro e veias, eu jurava que, por dentro, o corpo humano era cheio de planetas. Que se alguém me abrisse, veria constelações e planetas boiando em um infinito negro. Eu sei, uma bobinha. Mas eu não deixava de ter razão: somos feitos da mesma matéria que se espalhou pelo universo formando planetas, estrelas, vida, tudo o que conhecemos e outras coisas que ainda nem chegamos perto de imaginar. Então sim, o universo está dentro de nós.
Sabendo disso, é impossível ignorar as dimensões cósmicas do negócio em que a gente se meteu. Que o que parece grande e importante para a gente não é nada perto das grandezas com as quais o universo está acostumado a lidar. Que a Terra é um troço insignificante na escala do tempo e do espaço e que não pode nem se considerar especial por abrigar uma forma de vida senciente que inventou a internet (especialmente por ter inventado a internet), porque só a gente acha a humanidade digna de nota, até onde se tem notícia.
Sabendo que somos feitos da mesma matéria do universo e sabendo que até o sol vai se apagar um dia, é impossível ignorar que também deixaremos de existir, não apenas individualmente, mas como espécie ou como marco do que quer que seja. E que o nosso fim, assim como o fato de estarmos fincados nesse planeta, respirando e usando a internet, não é nem minimamente relevante.
Aí nos apegamos a tudo isso aqui com uma imensa vontade, só porque é difícil aceitar o quanto somos desimportantes. Mas a ideia de sermos efêmeros não deveria ser tão desesperadora quanto saber que estamos lançados numa imensidão insondável e não temos nem onde nos segurar. A boa notícia é justamente que isso vai passar.
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Nesse momento, eu estava tentando prestar atenção em qualquer coisa que não fosse a minha imensa azia. Na mesa do bar, uns amigos jogavam conversa fora – já que eu sou sempre a pessoa menos falante da mesa – e eu só pensando na grandiosidade do universo, em como aquele momento era insignificante e que, em breve, nem eles, nem o garçom nem o pedaço de chão onde estava a minha cadeira iriam existir mais.
Mas, para uma existência assustadoramente curta e passageira, a minha azia até que estava demorando a passar.
Quanto mais eu tentava pensar em outra coisa, maior ficava a minha azia. De repente, ela era a maior coisa no bar, na cidade, no planeta. A azia ficou maior que o mundo, maior do que eu. Ficou do tamanho do universo.
Mas o final da história você já sabe. A azia passou, fui para casa, dormi, acordei para um novo dia. Porque tudo passa: a chuva, a dor, o cosmos. Inclusive – e principalmente – nós.
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Fotografia da capa: Wilson Lau.