A difícil vida do privilegiado

Privilégio é um assunto espinhoso – especialmente para quem os tem. Ter que ouvir as dificuldades dos que são diariamente oprimidos é incômodo não porque escancara os privilégios que os privilegiados sequer percebem que têm, mas porque é uma puta injustiça não reconhecerem que a vida do privilegiado não é esse mar de rosas, não! A vida do privilegiado é bastante difícil sim, de forma que precisamos falar sobre suas penúrias e sofrimentos, sobre seus dramas, sobre suas dificuldades nesse mundo tão injusto.

A vida do privilegiado é difícil, acima de tudo, porque ele é incapaz de se perceber como tal. Sozinho ele não consegue ver que ele é rodeado de privilégios, de facilidades que os outros não têm, mas que para ele não passam de coisas banais, absolutamente normais. E como ele sofre por causa disso! Ter gente dizendo o quanto ele é privilegiado enquanto ele só está andando tranquilamente de mãos dadas com a pessoa que ama: “nada de mais! eu não sou privilegiado, imagina!”. Ele sofre por nunca entender porque estão reclamando que os filmes e comerciais quase não mostram negros, afinal, ele nem tinha percebido que eles não apareciam!

A vida do privilegiado é difícil porque ele tem imensa dificuldade de se colocar no lugar do outro. Não daquele que tem mais, do ricaço que tem lancha, mansão e conseguiu estudar no  exterior, mas daquele que tem menos. Para o privilegiado, é impossível imaginar alguém que não tenha feito faculdade não por escolha, coisa que ele está acostumado a ter, mas por falta de. É sofrível para o privilegiado tentar entender que aos outros é negada a autonomia ao próprio corpo que ele mesmo tem e sempre teve. E como é difícil viver com o privilégio de sequer conseguir imaginar por que tipo de coisa tem que passar uma pessoa que tem menos que ele.

A vida do privilegiado é difícil porque nem se esforçando muito ele consegue fracassar. Ele se ressente por ninguém falar da imensa pressão que ele sofre por poder fazer o que quiser e ser o que quiser na vida. Não é uma dureza viver em um mundo que funciona para não te deixar na pior nem se você quiser?

A vida do privilegiado é difícil porque ele não pode sequer expôr seus sofrimentos sem ser olhado como alguém mesquinho, que reclama de barriga cheia. Quando o assunto é violência contra negros, contra gays, contra transexuais, contra mulheres, contra pobres, contra índios, o privilegiado sente-se excluído, até revoltado. Ele não consegue aceitar não ser o centro de um assunto e, em sua angústia, entra na discussão para lembrar os oprimidos: “mas e eu? vocês não ligam para o meu sofrimento?”

A vida do privilegiado é difícil porque ninguém leva a sério o seu sofrimento. Seus reclames são transformados em piada e eles não podem nem contar com o politicamente correto (que tanto desprezam) para defendê-los dessas brincadeiras de mau gosto. O privilegiado fica, então, acuado pela insensibilidade daqueles que insistem em apontar seus privilégios e ofendê-los usando essa palavra feia.

privilegio

Ter gente lutando por coisas que para ele sempre foram tão acessíveis e bobas, isso sim, é querer ter privilégios. Ele, que mora no bairro certo, tem a cor de pele certa, tem o gênero certo e nasceu no corpo certo, é apenas alguém normal que conseguiu superar os obstáculos da vida, sem choramingar para ter privilégios. Mas ninguém reconhece isso.

Uma lágrima desliza sobre o rosto do privilegiado quando alguém fere seus sentimentos ao lembrá-lo de seus privilégios. E então ele enfrenta mais um calvário, que é a terrível sensação de culpa que o corrói por dentro quando ele finalmente percebe que pode ser um privilegiado. Atordoado, ele grita “eu não tenho culpa! Eu não tenho culpa!”, mas, na verdade, está apenas tentando fugir de algo mais doloroso que a culpa, que é a reflexão sobre uma estrutura que sistematicamente beneficia alguns enquanto oprime outros.

O privilegiado sofre porque ele não quer falar sobre isso. Ele não quer ouvir sobre isso. Ele quer poder continuar falando sobre seu sofrimento e dificuldades, sobre ter que pagar mais na balada, sobre ter que pagar impostos enquanto tem vagabundo (sic) recebendo ajuda do governo, sobre não saber como explicar para o filho porque dois homens estão se beijando, sobre o horror de não poder fazer piadas sobre estupro, sobre estar sofrendo censura porque fez um comentário racista que não foi aprovado num blog, sobre a empregada cheia de direitos trabalhistas que não se presta nem a fazer um mingau depois do horário de expediente, sobre ter que se apresentar ao exército enquanto as mulheres ficam na maior vida boa (embora ele, branco, de classe média e com um sargento ou coronel amigo do pai não tenha precisado servir de verdade, ao contrário daquele outro rapaz da periferia, que, mais que querer, precisava servir para conseguir sustento).

É duro ser um privilegiado, eu sei. Por isso o privilegiado precisa de ajuda, especialmente para enfrentar a parte mais difícil: enxergar seus privilégios.

Você conseguiu contar quantas vezes repeti as palavras “privilégio” e “privilegiado” no texto? Para alguns, vai parecer um descuido grosseiro, “não se repete tantas vezes umas palavra assim, essa autora não sabe escrever, vou lá nos comentários corrigi-la etc”. Por incrível que pareça, isso foi cuidadosamente pensado para ter um efeito. Você sabe dizer por que fiz isso? Sim. Para que o privilégio deixe de ser uma coisa invisível. Quem sabe assim, repetindo a palavra incansavelmente, ela consiga se materializar diante dos seus olhos, ganhar textura, cor, formato, volume e que você consiga perceber os privilégios que te cercam. Que eles são palpáveis, que eles têm peso. Que eles são isso: privilégios.

Fotografia da capa: Dan Queiroz // Flickr Creative Commons