Não é lindo quando um político fala que defende os valores da família? Não que defende coisas palpáveis, como água encanada para todos, ou uma reforma no Ensino Médio, ou a construção de uma cidade subterrânea, ou a arrecadacão de impostos sobre a beleza, mas sim os “valores da família”. Essa coisa indiscutivelmente importante, mas que ninguém explica o que é.
Justamente por ninguém nunca dizer o que isso significa, é que podemos fazer um breve exercício de imaginação para preencher com algum sentido os “valores da família”. Que valores são esses, afinal?
Valores da família são as pequenas hipocrisias que mantêm a sociedade unida, apesar de tudo.
Valores da família são os momentos de constrangimento nas festas de fim de ano. É reencontrar a prima e dizer que ela emagreceu só pra parecer educado. É dizer para aquela parente distante que você nunca visita: “nossa, como você está sumida!”
Valores da família são os pais projetando nas crianças o que eles sempre quiseram ser mas não puderam, porque precisavam trabalhar duro e ganhar dinheiro para um dia poder ter filhos. É não querer que o filho assuma que gosta de rapazes por medo do que os vizinhos vão falar. É poder dar beijo de língua nas primas, porque elas não são exatamente família, né?
Valores da família são a macarronada e o frango assado de todo almoço de domingo com os pais. É a desculpa que todo mundo dá para não lavar a louça depois. É dividir o quarto com o irmão e ele pegar suas coisas sem pedir. É a mãe ver que a família está desmoronando quando encontra maconha na gaveta da filha. Ou uma camisinha. Ou um DVD do Rafinha Bastos.
Valores da família são os casamentos que não acabam por preguiça. Ou medo. Ou porque “o que iam dizer, meu deus?”. É poder criticar as escolhas daquela sua sobrinha artista, que não fez concurso público. É esperar que os seus filhos tenham a mesma religião que você.
Valores da família são as bonecas caríssimas que você dá para sua neta, mesmo que ela tenha pedido o boneco do Batman. É ser adolescente e gritar dramaticamente “eu nunca pedi pra nascer!” se a mãe ameaça dar bronca. É ir transar na casa do namorado ou da namorada porque os pais dele ou dela se importam menos com isso. Ou preferem nem imaginar o que vocês estão fazendo.
Os valores da família incluem todos os pitacos que você pode dar na vida dos seus parentes. Ou os comentários invasivos que você pode fazer sobre a família dos outros. Exatamente como fazem alguns políticos, ao acreditar que aqueles que não têm uma família com pai e mãe casados na igreja, filhos heterossexuais e casa própria sejam menos família, com menos valores.
Para os defensores dos “valores da família”, a família é um monólito. Um conceito estático e imutável que deve estar sempre acima de tudo e de todos. Como se as famílias deles valessem mais que as outras. Como se as famílias que eles consideram “certas” não estivessem cheias dessas pequenas controvérsias e momentos de constrangimento. Como se existisse família “certa”.
Nesse caso, não são os valores da família que precisam de defesa; mas nós é que precisamos nos defender de seus defensores.
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Fotografia da capa via James Vaughan // Flickr Creative Commons