Season finale da humanidade

220 dias após o fim do mundo.

Em algum escritório com ar-condicionado no centro da cidade, um funcionário que não precisava usar gravata folgou um nó imaginário em torno do seu pescoço, na tentativa de diminuir a sensação de sufocamento, e pensou: “não vejo a hora de chegar sexta-feira”.

O negócio é que isso não fazia mais a mínima diferença. O mundo tinha acabado e o tão aguardado apocalipse foi rápido como um peido. Não foi um megaevento cheio de efeitos especiais, terror, ranger de dentes e meteoros salpicando as ruas, como a maioria esperava que fosse ser. E foi tão rápido e casual que a maioria nem percebeu.

Por algum motivo desconhecido por todos, o fim do mundo acabou caindo meses antes do previsto, fazendo com que todos continuassem esperando pelo apocalipse quando na verdade ele já tinha acontecido há tempos.

Este pequeno detalhe foi capaz de proporcionar um problema de dimensões trágicas que só não abalou o mundo porque, a esta altura, ele já tinha acabado.

Peço que me perdoe pelo inevitável spoiler, mas na história a seguir todos estão mortos. Algo que não será muito difícil de imaginar, já que você também está.

231 dias após o fim do mundo.

Solano acordou atrasado e se arrumou às pressas para ir ao trabalho. No caminho, furou um sinal vermelho. Chegou ao escritório de olhar baixo, pois não se lembrava se havia tirado as remelas da cara antes de sair, o que denunciaria o motivo de seu atraso. Ao ligar o computador, comentou que o trânsito estava uma loucura, que estava cada vez mais difícil ser pontual em uma cidade como aquela.

O chefe, que parecia estar esperando o funcionário há horas, mas que na verdade havia chegado há apenas dez minutos, apareceu diante de sua mesa passando mil tarefas que precisavam ser entregues em apenas duas horas. Na frente de todos, lembrou que o horário do expediente naquela empresa começava às oito. Solano pediu desculpas, de cabeça baixa.

Sua vontade mesmo era de mandar aquele desgraçado à merda. Que importava chegar uma ou duas horas atrasado, se precisava sair depois do horário quase todos os dias para dar conta da demanda monstruosa que lhe era incumbida? Isso sem receber hora extra e ganhando um salário de dar vergonha.

Então pensou no aluguel para pagar, no financiamento do carro, na mensalidade da pós, nas compras do mês. Não podia pedir demissão assim. Voltou sua atenção ao computador, desejando apenas que a sexta-feira chegasse logo.

237 dias após o fim do mundo.

Em um culto cheio de pessoas ardorosamente fiéis, um pastor falava sobre a misericórdia divina. Lançando perdigotos no púlpito, enfatizou que Jesus vai voltar, que o tempo está próximo. “Amém, amém, glória, aleluia”, respondiam os fiéis. “A hora de aceitar Jesus é agora! Só ele pode nos salvar da danação eterna, amém?”

Sueni agarrou sua Bíblia com fervor ao responder “amém”. Ela estava preparada para o retorno de seu salvador. Nesse dia, o mundo acabaria e quem não tivesse aceitado Jesus seria lançado ao sofrimento eterno, para pagar por seus pecados. Ela não. Ela seria arrebatada por seu deus misericordioso e viveria a eternidade, após o fim do mundo, na glória do senhor.

Mas seu espírito só viveria em paz se ela conseguisse converter o irmão e impedir que ele ardesse na fogueira de Satanás. Ele precisava se arrepender de sua vida tortuosa logo, antes que o mundo acabasse.

299 dias após o fim do mundo.

Seis da manhã e uma fila já se formava em frente a uma loja de celulares. Consumidores ansiosos para adquirir o novo telePhone se espremiam de frio e mordiam os lábios esperando a abertura da loja. “Quero ser um dos primeiros a ter o aparelho”, declaravam com entusiasmo aos repórteres. Ninguém sabia explicar por quê.

Em outro canto, um casal de namorados anunciava aos pais que a garota estava grávida. Como todos falavam dos preparativos para a chegada do bebê e ninguém mencionou casamento, a avó da garota, na outra ponta da mesa, apenas resmungou: “ninguém mais se preocupa com as tradições hoje em dia.”

Mais tarde, um jornalista de um grande portal publicava a seguinte notícia: “flagrada na praia, atriz Celina Monrone exibe dobrinhas e estrias”.

583 dias após o fim do mundo.

Um festival atraiu milhares de pessoas para uma cidade do interior. A festa, regada a música sertaneja e muita bebida alcóolica, chamou a atenção do país pelas orgias e loucuras que aconteceram lá.

O jornalista de um grande portal publicou uma matéria com o título “festa de música sertaneja vira grande suruba — veja as dobrinhas e estrias das mulheres que ficaram completamente nuas por lá”, que foi compartilhada por milhares de pessoas na internet.

A vovó viu o caso pela televisão enquanto tricotava e ficou impressionada com a inconsequência daqueles jovens. “A geração de hoje não se importa com o dia de amanhã!”

Sueni, aterrorizada ao saber da notícia, orou em línguas pedindo misericórdia. No juízo final, que aconteceria em um futuro conhecido apenas por seu deus, todos eles seriam castigados e punidos. Inclusive e principalmente aquela jovem que tirou toda a roupa e dançou nua em cima de um carro. A jovem e seus peitões lindos e macios seriam punidos, sim, seriam.

Aneta, a dona dos peitos, sinceramente não ligava. Continuou dançando.

Ninguém sabia, mas os poucos que perceberam que todos estavam mortos e que o mundo tinha acabado há muito tempo estavam nessa festa.

700 dias após o fim do mundo.

Solano já não se sentia bem há algumas semanas. Trabalhando demais, não teve tempo de ir ao médico. Resolveu ir quando estava cuspindo e vomitando sangue a cada vinte minutos, o que começava a afetar a sua produtividade.

O médico fez os exames e uma cara preocupante. Anunciou que a doença de Solano estava em estágio avançado, que ele precisaria ser internado para fazer o tratamento.

Na cama do hospital, Solano teve tempo para pensar. Qual era o objetivo de trabalhar tanto para consumir e pagar contas, se de repente deixaríamos de existir? Por que tanto apego à existência se sequer sabemos o que fazer com nossas vidas?

E então Solano revirou na cama, tentando ver o lado positivo da situação. Afinal, poderia ter sido pior, ele pensou. “O mundo poderia ter acabado antes de eu ter sido promovido, na semana passada.”

Fotografia da capa: Freaktography // via Flickr Creative Commons


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