Merida, de Brave, e Katniss, de Hunger Games, têm muito mais em comum do que serem extremamente habilidosas com o arco e flecha. Ambas se opõem à situação de opressão que é colocada contra elas: uma não concorda que tenha que se casar e se comportar como uma “princesa”, contra a sua vontade; a outra não concorda com uma Capital que escraviza doze distritos, um entre os quais é seu lar, e coloca um grupo de crianças para lutar entre si até à morte como forma de entretenimento.
Elas são rebeldes. Elas desafiam o poder desses sistemas. Mas, para muita gente, isso não é o suficiente para que elas sejam consideradas heroínas exemplares.
À época que assisti Hunger Games (no Brasil, Jogos Vorazes), descobri um artigo do Last Psychiatrist que alerta para algo que as pessoas pareciam não perceber: Jogos Vorazes não teria nada de feminista. O autor questiona a força dessa personagem feminina, lembrando que em um jogo onde apenas o mais forte, o mais esperto e o mais durão pode vencer (pois seu distrito depende disso para se livrar da miséria completa), Katniss venceu sem precisar matar ninguém.
Ele critica Katniss por ser “passiva demais” e não fazer absolutamente nada para vencer. Chega a compará-la com a Cinderela, uma das personagens mais inertes dos contos de fadas. O que o autor dessa crítica fez foi jogar um balde de água fria em quem acreditava que finalmente ia ver um filme protagonizada por uma heroína fodona. “Não, garotas, não foi dessa vez. Quem sabe uma próxima, né?”
Eu cheguei a concordar com esse artigo. O negócio é que eu sei que posso mudar de opinião, tanto é que foi o que eu fiz. Depois de refletir melhor sobre a história e ler o livro que deu origem ao filme, penso que esse crítico não poderia estar mais errado. Katniss não só toma decisões na história, como suas atitudes desencadeiam uma revolução que posteriormente toma o país.
Katniss também mata. É verdade que ela mata para defender sua pequena aliada, Rue, ou em legítima defesa, ou ainda por misericórdia – quando um de seus adversários está sendo atacado há horas por enormes cachorros, mas não morre por causa da armadura que reveste seu corpo.
E é aí que mora o grande incômodo do autor do tal artigo. Katniss não mata geral para sair vitoriosa. Aparentemente, uma personagem feminina forte de verdade precisaria fazer isso para provar que não é só mais uma garotinha indefesa. Mas será que podemos desconsiderar Katniss como uma heroína forte por ela não ser uma exterminadora destemida como diversos heróis homens que estamos acostumados a ver em filmes de ação?
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A história que vi em Brave (no Brasil, Valente) é completamente diferente da história que eu imaginava quando vi os trailers. Mas isso não significa que fiquei decepcionada. Muito pelo contrário. A Pixar continua mostrando que não só consegue emocionar, mas também surpreender.
Eu esperava um filme sobre uma heroína valente. Mas tudo mudou quando percebi que (e já avisei que tem spoilers, né?) a mãe de Merida é transformada em um urso pela própria filha. Acidentalmente, claro. Tudo que a ruivinha queria era um feitiço que mudasse sua mãe, para que ela não mais obrigasse Merida a se casar com um dos filhos dos chefes dos clãs. Acontece que a bruxa que Merida encontra nem é má nem nada. O problema é que ela resolve tudo na base do urso. Precisa de um feitiço para ganhar a força de dez homens? Urso. Precisa de um feitiço pra mudar sua mãe? Urso. Quer um lindo artefato de madeira? Urso.
Então eu, que esperava um filme com uma protagonista mulher, ganhei um filme com duas. Fiquei feliz, porque não é muito comum encontrar filmes protagonizados por duas mulheres que não conversam só sobre homens. Sendo mãe e filha, ainda por cima. Além disso, Elinor, a mãe de Merida, deu uma ursa divertidíssima. Eu, que já entrei na sala de cinema apaixonada por Merida, acabei virando fã, na verdade, da mãe dela.
Mas muita gente pareceu não ficar satisfeita. Ouvi gente dizendo que a história é sobre uma heroína rebelde que não concorda com a mãe machista, mas que termina tão machista quanto a mãe. Foi inevitável lembrar do artigo do Last Psychiatrist criticando a Katniss. Porque o nível de exigência para considerar uma personagem mulher uma ~heroína de verdade~ é absurdamente mais alto do que para qualquer outro personagem.
Mas por que Merida teria se tornado machista? Por que ela volta atrás, depois de toda cagada que fez com sua mãe, e quase aceita se casar com um de seus atrapalhados pretendentes, para impedir a guerra que os clãs começam a travar? Vale lembrar que Merida não é a única heroína. Nesse momento, coube a Elinor orientar Merida a propor uma nova tradição: que os jovens pudessem se casar com quem eles quisessem, para que, dessa forma, escrevessem sua própria história.
Os clãs acharam uma excelente ideia, porque nem os jovens pretendentes queriam se casar à força. Com isso, o filme mostra que a ruptura com determinados padrões impostos liberta não apenas as mulheres, mas também os homens. E o mais impressionante é que Merida só precisou conversar. Veja só, ela nem precisou empunhar uma espada ou lutar com seu arco e flecha!
Merida só levanta a espada para defender sua mãe, quando seu pai tenta matar a ursa – que ele não sabe que é, na verdade, a rainha Elinor. Mas o combate mais emocionante fica por conta de outra heroína. Quando o urso maligno e verdadeiro inimigo do rei aparece e ataca todo mundo, é a ursa Elinor que vai à luta para defender sua filha, em uma cena de ação que conseguiu me levar às lágrimas.
Não entendo como Merida e a mãe possam ter tornado o filme machista. Mas entendo que muita gente vá desconsiderar Merida como uma heroína valente de verdade, assim como fizeram com Katniss. Assim como fizeram com várias outras personagens. Porque não basta existirem pouquíssimos filmes protagonizados por heroínas; as protagonistas ainda precisam se encaixar em uma série de quesitos, se não o filme é deslegitimado. A história delas não vale. “Fica pra próxima, garotas!”
E não é exatamente o que acontece com todas as mulheres? Precisamos nos enquadrar em padrões inatingíveis, somos avaliadas rigorosamente para que possam nos considerar ~mulheres de verdade~ (como se isso existisse), porque se não, não somos levadas a sério. É como se nunca fôssemos o suficiente.
Assim como as heroínas que ilustraram esse post: Merida e Katniss só não são o suficiente porque queremos ver mais personagens como elas.