Nasci em outro século. Em outra era. Em outro mundo. Antes de chegar aqui, tive que meter a caneta em muita fita cassete para enrolar de volta a parte mastigada pelo aparelho de som. Não foi fácil. Mas ouvindo conselhos do próprio He-Man aprendi a sobreviver. Aprendi, em uma realidade onde um Ctrl + Z era impensável, que tudo tem um jeito, ainda que o Liquid Paper deixasse as marcas dos nossos erros no papel.
Sou feita de coisas que não existem mais. Sou feita de fazer cartucho funcionar na base do sopro. De ter que pesquisar na Barsa e copiar, ipsis literis, a vida de Dom Pedro de Alcântara para o meu caderno Click com a Ana Paula Arósio na capa. De trocar papel de carta com as amigas. De gostar de prova só pelo cheirinho de papel mimeografado.
Vim de um mundo onde não era preciso escavar para encontrar dinossauros: eles vinham na embalagem de revistas. Juntei ossos e montei meus próprios esqueletos jurássicos em casa — e eles brilhavam no escuro. Vim de um mundo onde o status era medido pela quantidade de Tazos que você tinha. Ou pela quantidade que você conseguia derrubar em uma única tacada. Vim de um mundo onde as pessoas eram discriminadas pela cor: ou rosa ou amarelo. Ou azul ou preto. Ou vermelho ou verde. Mas depois de morfar, todos combatiam juntos bonecos de massa imaginários.
Barbies e Comandos em Ação faziam parte do mesmo universo, em histórias em que as bonecas ganhavam roupas de heroína costuradas à mão, inspiradas no uniforme da Patrine. Mas bonecos não precisavam ser 3D. Às vezes, Batmans e Cebolinhas eram recortados das revistas em quadrinhos e viravam personagens de histórias inventadas e contadas ao vivo.
Tudo o que importava podia ser lido na revista Herói. Tudo o que interessava podia ser visto na Manchete, em tardes que faziam o sorriso brotar nos lábios com bigode de Quik. Mas nem tudo era Rá-tim-bum. Havia o submundo das coisas proibidas, e os mais ousados se aventuravam a dar uma espiada nas moças Tutti-Frutti fazendo strip-tease no Cocktail. Mas poucos tinham coragem de encarar o Cine Trash; nada podia ser mais terrível que o Zé do Caixão. Ele aparecia nos meus piores pesadelos.
Só que tive que assistir ao mundo que eu conhecia ser extinto e substituído por outro. Sem vinis coloridos, sem Bebeto como herói da seleção, sem Cr$, sem Passa ou Repassa. Cheguei sem entender muito bem por que usar um computador e estranhei o fato de não ter lado B em um CD. Mas ou eu me adaptava e me moldava, como uma Amoeba, ou desaparecia para sempre, como a necessidade de rebobinar um filme depois de assistir.
Hoje não estranho pessoas movendo o corpo todo para jogar videogame, por mais que fosse motivo de zoação, antigamente, alguém acompanhar o pulo do Sonic com o controle ou dobrando a língua. Hoje pesquiso na internet com a mesma facilidade com que antes eu resolvia as atividades do Almanacão de Férias da Turma da Mônica. Hoje sou uma pessoa diferente. Mas meus joelhos calejados de LEGO não me deixam esquecer de onde vim.
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Fotografia da capa: via Wikimedia Commons.