Em defesa dos que creem

Outubro de 1938. Quem sintonizou na rádio CBS, na noite da véspera do Dia das Bruxas, ouviu uma reportagem sobre uma invasão alienígena acontecendo ao vivo. Era, na verdade, a dramatização do livro A Guerra dos Mundos, escrito por H. G. Wells, mas muita gente não entendeu e acreditou que fosse real. Deu no que deu: mais de um milhão de americanos entrou em pânico.

Julho de 2011. Um blog publicou a história de um livro, descoberto há sete séculos num mosteiro espanhol, que continha a fórmula das histórias universais da humanidade. A tal Teoria do Todo Literário ajudou autores a escrever suas maiores obras. A verdade é que o texto sobre o Livro Infinito era pura ficção. Mas eu acreditei.

Ontem. Dona Marisa estava em casa quando recebeu um e-mail falando sobre o desaparecimento de uma garota em sua cidade. Ela se chamava Ashley Flores e seu pai, um engenheiro, estaria à procura dela há duas semanas, quando ela foi vista pela última vez em um shopping. Porém, o desaparecimento de Ashley Flores não passava de um hoax, uma história falsa propagada por corrente de e-mails desde 2006. Mas Dona Marisa acreditou e encaminhou, na esperança de ajudar a localizar a garota.

“Vocês só podem ser idiotas por acreditarem nisso”.

Credulidade não é exatamente algo que as pessoas se orgulham de ter. Até porque tem sempre um chato querendo desmentir a crença dos outros, mostrar incoerências, apresentar os fatos. Mas as pessoas que creem não são idiotas que não sabem das coisas. Pessoas que creem são a prova viva da força das histórias que contamos. É claro que não deixo de ser a chata, mas só com histórias de que não gosto, tipo a Bíblia ou Crepúsculo.

O negócio é que buscamos acreditar nas coisas. Mesmo quando sabemos que aquilo não é real. É o que acontece com quem adora um ARG (Alternate Reality Game); nestes jogos de realidade alternativa, os jogadores às vezes precisam sair na rua para cumprir tarefas e agem como se estivessem dentro da história. Evan Jones, criador de ARG’s, deu uma palestra em que falou sobre essa capacidade de nos permitir acreditar em coisas que sabemos que não passam de ficção. É a “suspensão da descrença”. É o que nos permite assumir por alguns instantes uma realidade que não existe, entrar na pele de personagens, viver aventuras imaginárias e acreditar que estaremos muito fodidos se o Neo não conseguir derrotar as máquinas.

Em seu blog, Bruno Scartozzoni lembra que, mesmo que uma história não seja de verdade, as sensações que ela causa são bem reais. É só você se lembrar da última vez que você sofreu junto com um personagem.

Todas as boas histórias (reais ou não) falam de grandes verdades humanas, e esse tem sido o nosso principal instrumento de auto-conhecimento desde o início dos tempos. As mitologias estão aí para provar isso.

A ficção precisa de pessoas que acreditem nela.

Quando a DC Comics resolveu revelar que um de seus importantes personagens era gay, foi um deus nos acuda. Polêmica. Teve gente que não gostou da novidade e não aceitou que a editora inventasse agora que o Lanterna Verde gostasse de outros caras. Nada de mexer assim na sexualidade do meu herói, pô. Mas pensa bem: ele não pode ser gay. Nem hetero. Porque o Lanterna Verde simplesmente não existe.

É linda essa capacidade de acreditar com tanta força em algo a ponto de questionar a sexualidade de um personagem, sem precisar questionar o fato de ele usar um anel de outro mundo que lhe dá poderes praticamente ilimitados. Porque, para quem acredita (suspensão de descrença, oi), isso faz todo o sentido do mundo.

Certo, tem gente que extrapola um pouquinho e começa a usar suas crenças para dizer às outras pessoas como devem viver suas próprias vidas. O problema não é alguém acreditar em leprechauns, é alguém vir me dizer que eu só devo me relacionar com pessoas ruivas porque se não os malditos leprechauns ficam irritados.

leprechaun

Hoje em dia, quando vejo pessoas que ainda acreditam na história de Adão e Eva como o evento que realmente deu início à humanidade, só consigo ficar admirada. É uma história tão forte que atravessou incontáveis gerações sendo considerada verdadeira — qual é o autor de hoax de e-mail que não gostaria de conseguir essa façanha? É por isso que eu acredito e sigo acreditando. Acredito no poder das histórias.

Fotografias: Puno 3000 // via Flickr Creative Commons