Assim que Onde Vivem os Monstros (no original, Where the Wild Things Are) entrou em cartaz no cinema, resolvi me adiantar e dar uma lida no livro em uma dessas vezes em que tive que matar o tempo no shopping até a hora do almoço. Fui até a seção infanto-juvenil (definitivamente minha favorita) e peguei o livro de Maurice Sendak, em uma edição mais nova do original escrito em 1963. Ilustrações, de fato, encantadoras. Já quem achou que Avatar de James Cameron não tem história, ia ficar um bocado decepcionado. A história do livro de Sendak é no máximo um pretexto para as ilustrações. Conta as aventuras de Max, um menino desobediente que é mandado de castigo para o quarto por fazer bagunça. Começa a imaginar um mundo cheio de monstros onde ele possa reinar e agir como um, mas volta ao seu quarto a tempo de encontrar seu jantar quentinho. Um livro que você lê em dois minutos. Ok, em cinco, se der atenção a cada desenho. Mas não se pode exigir uma história muito elaborada de um livro feito para crianças em fase de alfabetização – e nisso, cumpre muito bem seu papel. É um livro que daria ao meu filho, sem dúvidas.
Então fiquei ansiosa para ver que tipo de limonada Spike Jonze faria deste limão. As imagens da prévia já haviam mostrado que o visual do filme seria tão fascinante quanto o do livro: monstros corpulentos, peludos, de feições monstruosamente simpáticas. Mas só quando estava devidamente acomodada na poltrona do cinema, é que percebi que a beleza da ambientação do filme ia muito além. A primeira coisa que me chamou a atenção foi a trilha sonora. Geralmente, não presto muita atenção a este detalhe, não sou uma pessoa muito ligada ao sentido da audição. Mas as músicas saltavam do filme, cantadas por vozes infantis tão sinceras, tão reais, dando ainda mais motivos para eu me envolver na história. E que história.
Max, interpretado por Max Records, é um caçula cheio de energia e imaginação ignorado por sua irmã mais velha, e que acaba tendo que se virar brincando sozinho. A cena dele brincando na neve e dando ordens à cerca me lembrou bastante o Calvin, outro garoto solitário e hiperativo que tem como único amigo imaginário um urso de pelúcia. A história sugere (entre outras inúmeras coisas que deixa apenas na sugestão) que o pai dele já está morto. A mãe de Max é uma mulher visivelmente cansada, que se desdobra no trabalho e passa por dificuldades em mantê-lo. Mas ainda assim é o único refúgio de Max – e ele, o dela. É para quem ele conta suas histórias, faz suas dancinhas engraçadas, é para quem guarda um lugar no seu refúgio contra a lava imaginária.
E então, quando sente essa sua zona de segurança ameaçada ao ver sua mãe se envolvendo com um homem, se rebela. É uma cena memorável a que veste sua fantasia de lobo, sobe em cima da mesa e grita “Feed me, woman!”. A mãe tenta controlá-lo (se já tivesse assistido Super Nanny saberia como lidar com isso), mas o garoto grita, esperneia e lhe morde com força. Quando percebe o que fez, fica desesperado e sai correndo pela rua, chorando, uivando e gritando. A mãe nunca consegue alcançá-lo. É dada uma enorme carga dramática a um momento do livro que se resumia ao castigo.
É de barco que ele chega aonde vivem os monstros. O mais curioso é que as criaturas têm nomes comuns (pelo menos para americanos), e não falam nenhum tipo de idioma estranho. Exceto pela aparência, falam e se comportam como nós – ou melhor, como nossas crianças. Isso fica bem claro quando Max, para se salvar de ser devorado por eles, os intimida dizendo que tem poderes e conta histórias de como explodiu a cabeça de vikings malvados. É engraçado como os monstros acreditam ingenuamente em cada palavra do garoto e até o nomeiam como seu Rei. É a beleza da mesma ingenuidade que levam as crianças a acreditarem com veemência nas histórias de fantasia que contamos a elas.
O filme não dá respostas prontas. De certa forma, é você quem cria sua história. Há muito espaço para você imaginar, e isso é o mais gostoso do filme. Ele no máximo sugere, e vai se desenvolvendo sobre o relacionamento de Max com seus novos amigos (ou súditos), baseado em diálogos incríveis e intensos justamente por serem singelos, com a simplicidade que a infância tem.
Mas é importante observar que cada personagem tem características muito marcantes e que nos revelam as muitas facetas de Max: Carol é o rebelde e impulsivo, o que levou o garoto a se identificar com o monstrão logo de cara. Judith é ranzinza, mal-humorada e meio agressiva, o que me levou a me identificar com ela logo de cara. Ira é o criativo, gosta de fazer buracos nas árvores como forma de expressão artística. Tem o Alexander, muito carente, sempre ignorado pelos outros. O Douglas é um grande companheiro; se você pudesse levar só uma coisa a uma ilha deserta, com certeza seria ele. Há também o touro, ele sequer chega a ser apresentado ao garoto; é observador e tem um quê de melancólico. E há a KW. Ela desperta um sentimento diferente em Carol, o que nos leva a acreditar que eles já tiveram uma forte relação que agora se encontra em crise.
Como eu já disse, Max chega ao mundo dos monstros na metade dessa história: Carol está revoltado porque as coisas mudaram, e parece que isso só aconteceu depois que KW foi embora (por um motivo que ainda não cheguei a entender muito bem, mas tem a ver com corujas). Carol explica a Max: “Antes todos costumavam ficar juntos. Sabe, é como se você estivesse perdendo seus dentes um a um. Eles vão ficando bem separados, e quando você percebe, já não tem mais nenhum”. Isso me fez pensar na KW como algo de materno, e na relação entre ela e Carol como um equivalente à relação de Max e sua mãe. A zona de segurança. O refúgio.
E crescer se trata de deixar esse refúgio. Max está passando por uma fase de crescimento, e o que acontece no mundo dos monstros tem muito a ver com isso. “As coisas eram mais simples quando brincávamos de guerra de lama”, diz Ira. E ele tem toda a razão. Não era bem mais simples quando você não tinha que se preocupar com seu extrato bancário, com o fato de estar no cheque especial e não conseguir sair dele? As coisas não eram mais simples quando você podia se vestir de lobo e fingir ter poderes? Ou quando você não tinha que lidar com grandes responsabilidades como faculdade, trabalho, ou cuidar de uma família?
A crise que Max passa quando deixa sua casa surge do conflito de crescer e ter que deixar seu refúgio. No mundo dos monstros, seu reinado é baseado em bagunça, inventar brincadeiras novas, construir uma grande fortaleza onde só acontece o que querem que aconteça. Um reinado para viver como criança com toda intensidade; mas não era o suficiente. Ser rei representa uma grande responsabilidade. O rei é responsável pelo sentimento dos seus amigos monstros, por cuidar deles, fazer com que sejam felizes. Quando percebe que não é capaz de tamanha responsabilidade, Max entende que não é um rei, e que nem tem grandes poderes. Que é só um menino normal vestindo roupa de lobo.
Um amigo disse que o filme é uma análise do comportamento infantil, e que seria mais fácil entender vendo dessa forma. Já eu digo que esse é um filme sobre imaginação (a do garoto e a nossa também), e que as coisas ficam ainda mais interessantes tendo isso em mente.
É um filme muito bonito, envolvente, e pode parecer esquisito se você estiver esperando uma história infantil convencional (ou qualquer tipo de história convencional). Não basta descrever, buscar as minhas interpretações e mostrá-las para dizer o quanto o filme é interessante. Recomendo que assistam e busquem suas próprias interpretações (se vierem aqui dividi-las comigo ficarei ainda mais feliz). Só há uma forma para descobrir afinal, onde vivem os monstros: ir você mesmo encontrar os seus.