Dormir de olhos abertos: o não-lugar do imigrante

Kai tem uma experiência de merda no Brasil. A turista taiwanesa vai passar férias em Recife, mas seu namorado argentino, com quem iria se encontrar, faz ela esperar no aeroporto por horas, desiste da viagem e diz a ela para aproveitar as férias sozinha. Não bastasse isso, o celular dela cai na privada, o ar-condicionado do seu quarto de hotel faz um barulho enlouquecedor a noite inteira, ela não fala português e não faz ideia do que fazer sozinha nessa cidade, onde tem a impressão de ser a única estrangeira.

Na feira local, conhece um feirante chinês com quem consegue conversar. Ele é gentil, empresta um alicate (para Kai dar um jeito no ar-condicionado) e dá a ela uma sombrinha de presente. Quando Kai retorna no dia seguinte para devolver o alicate, não o encontra mais. Apenas um rapaz empacotando e desmontando a loja. Ela pede para comprar um cartão postal, mas o rapaz deixa que ela fique com a caixa inteira.

Entre os cartões postais impressos na China com belas imagens das praias de Recife, Kai encontra um com o verso escrito em chinês. Há muitos outros escritos em espanhol, pela mesma pessoa: uma chinesa nascida em Buenos Aires, que fez do verso daqueles cartões um livro narrando sua experiência como imigrante no Brasil. De forma bem literal, mostra um outro lado do Brasil paradisíaco e hospitaleiro dos cartões postais.

Dormir de olhos abertos (2024) é uma verdadeira salada de línguas. O filme traz uma mistura de mandarim, espanhol (com sotaque argentino), português (com sotaque recifense) e inglês, de forma que nem achei estranho assistir com legendas em alemão. Viver como imigrante é se acostumar a ser rodeado por gente falando línguas que você nem conhece, ou ainda não entende muito bem, o que tem sido a minha experiência há alguns anos, de forma que o filme acertou em cheio em retratar essa experiência de confusão, de pessoas se espremendo em frestas de compreensão, juntando os caquinhos de palavras que sabem em outro idioma na tentativa de se fazer entender — o que, muitas vezes, não é possível sequer entre pessoas que compartilham a mesma língua materna.

O filme, escrito e dirigido pela alemã Nele Wohlatz, teve Kleber Mendonça Filho atuando na produção, é ambientado no Brasil, mas protagonizado por uma moça taiwanesa (Liao Kai Ro) e um grupo de trabalhadores chineses, entre eles o feirante Fu Ang (Wang Shin-hong) e a autora dos cartões postais Xiaoxin (Chen Xiao Xin), o que traz uma perspectiva bem diferente do nosso próprio país, ou ao menos diferente da imagem idealizada de país cordial na qual fatalmente, em algum momento, vamos nos ver tentados a acreditar.

Da perspectiva dos personagens, vemos um Brasil hostil. O sol é agressivo, faz muito calor, a água tem tubarão, o português é muito difícil de entender (mesmo para os que falam espanhol) e a comida não é tão boa quanto os sabores que os fazem sentir saudade da China. Omelete de ostras, pão Kompyang, sopa Guobian, enguia em molho vermelho. Quando Fu Ang tenta fritar peixe em casa, os vizinhos ficam putos e gritam para que fechem a janela, demonstrando que não suportam o cheiro que o faz se sentir em casa.

Há ainda a ignorância dos locais: aqueles mais agressivos que deixam claro que não gostam da presença deles ali, ou mesmo os brasileiros que tentam ser simpáticos, mas os chamam de “japas”, ou os confundem uns com os outros, como se fossem todos iguais. Gostamos de imaginar que somos uma terra que recebe imigrantes de braços abertos, mas não é muito difícil entender que estrangeiros até são bem-vindos, mas depende muito de quais.

O idioma é mais uma entre tantas barreiras que um imigrante enfrenta ao viver em outro país. Saber aquele idioma vai muito além de conhecer as palavras, conseguir ordená-las em frases que sejam capazes de comunicar aquilo que se quer dizer — quando se sabe o que se quer dizer, o que também pode ser impossível. O jeito de dizê-las também está impregnada de um modo de pensar, que pode nos parecer completamente alienígena, totalmente fora do nosso alcance. Podemos até entender o que se diz, que é algo completamente diferente de compreender por que aquilo está sendo dito daquela maneira.

Por exemplo, quando um dos rapazes aponta como o português dos brasileiros é confuso: “você acha que a frase terminou, mas aí eles colocam um não no final. A mercadoria chegou no porto não. Te amo não.” Por que deixar o não para o final? 

Acho maravilhosa essa experiência de olhar para o português de fora, do ponto de vista de um não-nativo. Tenho amigos que falam português e comentaram como acham curioso essa nossa mania de jogar tudo para o diminutivo, ou dar mil voltas para nunca dizer algo diretamente, especialmente quando é algo difícil ou negativo. O processo de aprender outro idioma também impõe que eu olhe para estruturas que naturalizei na minha fala, sem pensar demais a respeito, como usar muito a expressão “tem que”, ou fazer perguntas que começam, de alguma forma, com um pedido de autorização: “posso…?”, como se um senso de obrigação e de subserviência estivessem instaladas por padrão no meu pensamento em português. Por que será?

“Todas as palavras aqui soam frias para mim”, esta fala de Xiaoxin se referindo a palavras em português ficou muito marcada para mim. Ela traduz de forma perfeita o sentimento de estar diante de um idioma que não se domina. Mesmo que as palavras carreguem sentimentos e significados, se não somos capazes de acessá-los, elas nos chegam frias, distantes, protocolares até. O aquário no apartamento da tia de Xiaoxin também me parece uma metáfora visual para este mesmo sentimento: viver em um país sem falar a língua local (às vezes, mesmo falando um pouco) é estar isolado em um mundo dentro de outro mundo, separados por uma barreira onde quase nada nos chega do lado de lá, fora ocasionais batidas no vidro.

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Na ficção, o peixe babel resolvia como mágica a questão da comunicação entre diferentes idiomas: bastava enfiá-lo no ouvido que o peixe traduzia e transmitia via telepatia para a cabeça do usuário o que estivesse sendo dito em qualquer idioma existente no Universo (o que foi, na verdade, uma baita solução para o escritor, que precisava fazer personagens de diferentes planetas interagirem). 

Na vida real, tenho minhas dúvidas se essa tecnologia irá nos livrar da necessidade de aprender outros idiomas para nos comunicarmos com pessoas de diferentes culturas. O mais provável é que vá criar problemas novos. O desentendimento talvez apenas ganhe novas camadas com a comunicação sendo mediada por um robô.

Falar e entender um idioma vai muito além de saber o significado das palavras ou de entender as regras que regem as estruturas das frases. O ato de se comunicar em outro idioma implica em traduzir por completo quem você é, seu modo de pensar e de ver o mundo, de uma forma que toque minimamente as bordas do outro. 

A tradução é o elemento que carrega a história de Dormir de olhos abertos. É curioso que Xiaoxin tenha escolhido o espanhol, e não o mandarim, para narrar sua experiência no Brasil. Ela dedica a história ao seu amigo Fu Ang, que não fala espanhol e tenta, com muito custo, aprender português. Ou seja, para acessar as palavras de Xiaoxin, ele precisaria de alguém que traduzisse o “livro” para ele. Alguém que habitasse a intersecção entre essas duas línguas. É bonito como o filme mostra que ainda precisamos uns dos outros para conseguirmos nos traduzir.

“Acho que meu corpo ainda está em outro fuso”, Kai diz, em outra tradução perfeita que o filme traz sobre esse não-lugar que o imigrante experimenta, ainda que de diferentes formas. Esse meio do caminho é um espaço exaustivo de habitar. Como um quarto apertado onde você se espreme para caber em dois lugares e, ao mesmo tempo, não estar por completo em nenhum dos dois. Você dorme, mas seus olhos continuam abertos.