O que não quiseram me contar sobre Steven Universe


Texto originalmente publicado no Medium em março de 2017.


Uma mulherão de black power quadrado e óculos irados. Uma gordinha da pele roxa. Uma nariguda com roupas de balé. O que primeiro me chamou a atenção foi a infinidade de fan-arts retratando aquelas personagens.

Que será isso? Que tipo de desenho os jovens andam assistindo hoje em dia? Não ter filhos te deixa de fora de um mundo de novidades. Não que eu ache que meus pais um dia se interessaram por Sailor Moon só porque eu não parava de falar que puniria inimigos imaginários EM NOME DA LUA.

Mas lá fui eu investigar. Desenhos animados são algo que também dizem respeito à minha idade (seja ela qual for).

Uma rápida busca no Google revelou: Steven Universe. Desenho animado da Cartoon Network. Criado por Rebecca Sugar, uma das roteiristas e compositora das musiquinhas de A Hora de Aventura

Meu alarminho de “isso parece bom” soou duas vezes: se a responsável pelo desenho tinha a ver com A Hora de Aventura, grandes chances de eu gostar. Além disso, o visual do desenho era bem bonito, colorido, fera, daorinha.

Já tinha recebido várias indicações a favor de Steven Universe, mas nenhuma me deixou realmente curiosa. Isso porque elas vinham na forma de um “você TEM que ver!” ou de um assertivo “você vai gostar muito!”; mas nenhuma sinopsezinha que seja.

Comecei a assistir, mas os primeiros episódios não me pegaram. Acontece. Tantas séries por aí e natural que nem todas sejam feitas para o nosso gosto.

“Vai melhorar! Lá pelo episódio x vai ficar bom, cê vai ver!” Mas nenhuma pista de por que esse desenho era tão legal. Como se os fãs de Steven Universe fizessem parte de uma seita e não pudessem revelar o que faz o clubinho deles ser tão bacana. Não só eles, ultimamente.

É irritante como essa cultura de medo de spoiler tem nos afastado de ter boas discussões sobre as histórias que consumimos. No máximo podemos falar se é bom ou não, mas jamais contar um pouco da história, falar sobre o que nela há de tão interessante. 

Como escreveu Juliana Cunha em “Foi tudo um sonho”:

A pessoa que disser que eu estraguei O Sexto Sentido ao contar o fim estará completamente correta. A pergunta é se um filme que pode ser estragado com uma frase merece ser preservado.

Não é o caso de Steven Universe.

Continuei a assistir e a história me conquistou. Tanto que ainda estou na segunda temporada e já senti vontade de escrever sobre, na tentativa de explicar, sem fazer cerimônias, por qual motivo esse desenho merece sua atenção.

1. É ficção científica das boas

Steven Universe é um garoto que mora numa cidadezinha litorânea chamada Beach City e é criado por três alienígenas. Há milênios as Crystal Gems vieram de outro planeta, onde as habitantes têm poderes especiais vindos das pedras que as representam.

A falecida mãe de Steven também era uma Gem, o que faz do garoto metade humano, metade alien. O pai do garoto, o Sr. Universo, tem um lava-carros e mora numa van. Mas Steven mora na casa que era de sua mãe, com suas tutoras Gems.

Começou a me soar mais como uma história de irresponsabilidade: Steven não é criado pelo pai, mas por três mulheres aleatórias, numa vibe meio Três Solteirões e uma Pequena Dama.

Ele nunca foi à escola e sequer sabe fazer contas (em um dos episódios, ele conta dinheiro pela quantidade de notas, e não pelo valor delas), alimenta-se basicamente de rosquinhas e comida de microondas, enquanto é colocado em diversas missões perigosas envolvendo criaturas de outros planetas. Um prato cheio para o conselho tutelar.

A questão é que Steven não é um garoto normal. Cabe às três Gems — Garnet, Ametista e Pérola — ensiná-lo a usar seus poderes para que ele possa assumir a grande responsabilidade herdada de sua mãe, Rose Quartz: proteger a Terra.

A ficção científica costuma trazer sob uma roupagem futurista e fantasiosa questões sobre nosso próprio mundo e sociedade. Um dos temas recorrentes do gênero é a exploração: alienígenas que invadem nosso planeta para destruir nossa raça, escravizar ou usar nossos recursos — ou histórias em que são os humanos que partem para outros mundos em busca de recursos.

A Guerra dos Mundos, de H.G. Wells, Crônicas Marcianas, de Ray Bradbury, ou Avatar, de James Cameron, são alguns exemplos. Essas histórias buscam colocar em perspectiva as inúmeras vezes em que a humanidade assumiu o papel de invasora aqui mesmo na Terra, seja colonizando outros povos, escravizando, sugando descontroladamente os recursos naturais, ou em ocupações militares com o simples intuito de dizimar o outro, o diferente.

Repare que essa escavadeira tem o formato de um vírus

O tema também está presente em Steven Universe: a raça das Gems invadiu a Terra há milhares de anos, em busca dos recursos do nosso planeta para fabricar suas guerreiras aqui. De forma bem parecida com nosso próprio ritmo industrial, isso começou a exaurir o planeta e ameaçar a vida na Terra.

Rose Quartz e suas Crystal Gems foram contra sua própria raça e provocaram uma guerra para expulsar as colonizadoras e proteger a vida terrestre.

BÔNUS DA CIÊNCIA: tal qual Sailor Moon, que falava dos planetas por meio dos poderes das personagens, Steven Universe aguça a curiosidade sobre geologia, ao apresentar personagens baseadas em pedras reais. Não poucas vezes me vi pesquisando sobre granada, peridotos, malaquitas e quartzo rosa. Algumas delas eu nunca havia ouvido falar!

Steven Universe pode ser considerado boa ficção científica também por usar a ciência e o gênero de invasão alienígena apenas como pano de fundo, enquanto foca nos dilemas e conflitos dos personagens. 

Boa ficção é sempre sobre pessoas. Ainda que algumas delas tirem armas da testa, sejam mulheres gigantes ou consigam ver o futuro.

2. As personagens são cativantes

Os primeiros episódios não exatamente me pegaram de jeito. Achei Steven um garoto irritante, bobo demais. Além disso, os episódios pareciam mais aventuras aleatórias de salvar o dia, com eventos que aconteciam porque sim.

O que eu viria a entender é que Steven ser tão bobo no início não era um defeito, mas parte do desenvolvimento de personagem. O contraste é importante para mostrar o quanto, ao decorrer dos episódios, o personagem cresce — em maturidade, já que ele continua nanico por um BOM tempo.

Steven parece ser um pirralho irritantemente feliz, capaz apenas de resolver as encrencas que ele mesmo cria, mas a verdade é que ele carrega responsabilidades grandes demais para o seu tamanho.

O momento em que mais fica evidente seu processo de amadurecimento é também um dos primeiros momentos em que vemos a vulnerabilidade e insegurança das Gems — que até então eram as adultas poderosas que sabiam de tudo.

Acontece quando as três preparam um teste para Steven, mas trapaceiam, elaborando desafios fáceis demais para garantir que ele não se machucasse. Sem que elas saibam, ele as ouve dizendo que não fazem a menor ideia de como ensiná-lo; é totalmente nova para elas a experiência de cuidar de um meio-humano, por isso têm tanto medo de exigirem demais dele e ele acabar se ferindo.

Steven fica bravo com isso, porque não quer ser visto como “café-com-leite”, mas demonstra grande maturidade ao fingir que o desafio foi IRADO, só para encorajá-las. É quando ele me conquista por inteiro: ele deixa de ser apenas protegido para ser também protetor. 

Não por acaso ele passa a dominar cada vez mais seus poderes, vindos da pedra em seu UMBIGO, relacionados à cura e proteção.

Steven e Connie numa bolha de proteção criada pelo garoto

Fico bastante feliz de que as crianças — especialmente os meninos — possam ter Steven como referência. É refrescante poder contar com um herói que, diferente da maioria que associa força à violência, mostre o quanto cuidar é poderoso.

Ele pode ser capaz de conjurar escudos e campo de força, curar com os poderes de sua baba, mas acredito que o principal poder de Steven Universe é o diálogo: ele sempre tenta conversar, entender o outro lado mesmo quando se trata de um potencial inimigo (como fez com as gems Peridot, Lapis Lazuli ou com a pequena Centípoda do episódio “Amigo Monstro”), além de ser um grande conciliador quando surge qualquer treta entre suas amigas Garnet, Ametista e Pérola.

É muito antiquada e caduca a ideia de que “cuidar” é um papel feminino, mas o desenho rompe com bastante naturalidade esse estereótipo. É característico de Steven essa leveza e tolerância. Graças à influência das Gems e de seu pai, ele pode desenvolver sua personalidade no que ela tem de melhor, em vez de ser tolhido para se encaixar nos padrões artificiais da masculinidade tradicional.

Já as Crystal Gems, embora alienígenas, são desenvolvidas de forma bem humana, e há nelas tanta verdade que fica fácil nos identificar com elas.

Garnet em momento de fofura

Garnet parece durona e inabalável, séria e caladona. Mas, no fundo, é bastante carinhosa e, como ela própria já admitiu em certa ocasião, tem um senso de humor incrível. Ela tem lá suas questões internas às vezes, como se gelo e fogo se chocassem dentro dela, mas quem nunca, né?

Ametista é tão intensa quanto desorganizada e bagunceira. Adora ver o circo pegar fogo, não gosta de levar as coisas muito a sério e não é muito fácil de lidar. Mas a caçula é assim tão impulsiva principalmente por sua necessidade de se provar, pelo medo de não ser boa o suficiente — o que tem a ver com a forma pela qual ela foi gerada, que é considerada “defeituosa”.

É impressionante como elas se parecem com tantas pessoas reais que conheço. Mas o que me impressionou ainda mais a cada episódio foi me ver 100% refletida na Pérola (também por motivos de pernas finas).

Pérola é aquela chata que faz tudo certinho, doida por organização, a nerd que sempre tem que saber de tudo. Embora pareça frágil, é extremamente esforçada. Está sempre em busca da perfeição, mas é bastante insegura (como mostrado no episódio “Juramento à espada”) e guarda uma enorme carência, deixada pela saudade de Rose Quartz.

Assim como Steven amadurece, as Crystal Gems também se desenvolvem ao decorrer dos episódios, revelando outras nuances e aprendendo no caminho. O mais legal é que as relações de todos os personagens — mesmo os secundários, sejam eles humanos ou não — são afetadas pelas consequências de suas escolhas. Ou seja, aquilo que uma personagem fez ou falou e deixou a outra chateada vai realmente impactar aquela relação a partir dali.

Mais uma evidência de que não é apenas um desenho bobinho, mas uma história bem escrita. Se as escolhas dos personagens não dão em nada e a história segue como se nada tivesse acontecido, por que eu deveria sequer me importar com eles?

3. É uma história sobre conexões

Além da musiquinha de abertura, um dos elementos mais importantes em Steven Universe é o conceito das fusões.

As Gems possuem essa capacidade de mesclar seus organismos em um único corpo, formando um novo indivíduo, com poderes potencializados de acordo com as habilidades e personalidades das Gems envolvidas.

Opal

Por exemplo, quando Ametista e Pérola se fundem e se transformam em Opal, minha fusão favorita, também conhecida como MULHER GIGANTE (amo a musiquinha), elas ganham em tamanho, poder e suas armas se combinam para virar um arco-e-flecha mágico.

Gosto dessa fusão especialmente por Ametista e Pérola serem personalidades tão conflitantes que, quando juntas, se transformam em alguém incrível. Isso passa uma mensagem e tanto.

Bem, dois personagens que fazem uma dancinha, fundem-se num mesmo corpo e se transformam em um personagem mais poderoso não é exatamente novidade: ei, já vimos isso em Dragon Ball Z!

Se voltarmos mais no tempo, no entanto, veremos que essa ideia é mais antiga do que o Gogeta ou o Gotenks.

O discurso de Aristófanes, em O Banquete de Platão, já apresentava a ideia de um ser constituído de dois braços, duas pernas, uma cabeça com duas faces, que andava dando estrelinhas (bizarro), mas é separado por um raio quando irrita os deuses. Essas duas partes estariam condenadas a vagar pela Terra à procura de sua outra metade, sua alma gêmea.

As fusões de Steven Universe se assemelham bastante a essa ideia (especialmente quando o resultado da fusão ganha olhos ou braços a mais), mas com um detalhe revolucionário: todas as Gems podem ser “metades” umas das outras! Não há exclusividade, como a ideia original da “alma gêmea” faz parecer. Por exemplo, Pérola faz fusão com Ametista, mas também pode fazer com Garnet, assim como um dia já fez com Rose.

Esse conceito, na verdade, subverte por completo a ideia sobre o amor apresentada em O Banquete de Platão que ainda nos persegue nos tempos atuais. Ele se baseia na ideia de que cada Gem já é completa por si, ao invés de um ser pela metade que precisa do outro para ser alguém. Claro, para se unir a alguém numa relação, precisamos, primeiro, ser pessoas completas.

Na fusão, a individualidade das Gems envolvidas não se perde, mas coexiste para criar uma experiência, que, na palavras de Garnet, deve tentar ser maravilhosa enquanto dure.

É bem evidente que as fusões são uma metáfora para relacionamentos, o que nem sempre significa que todas serão como o amor lindo e profundo entre Rubi e Saphire; nem toda relação é feita de amor saudável, como lembra a fusão entre Jasper e Lapis, uma metáfora para relacionamentos abusivos; até mesmo a forma como as fusões são encaradas no planeta natal das Gems é cercada de tabus e intolerância: lá, fusões entre Gems de tipos diferentes são consideradas uma aberração.

Enquanto tantas histórias preferem abordar amor & relacionamentos de uma perspectiva idealizada, ou resumindo o tema àquela parte rasa do famoso quem-fica-com-quem, Steven Universe tem a coragem de trazer as partes mais incômodas e verdadeiras do assunto, ainda que pareça a história de um menino que usa chinelo de dedo e monta num leão cor-de-rosa. É um desenho tão corajoso quanto seus personagens.

Mesmo onde não há fusões envolvidas, o desenho orbita em torno dos vínculos e laços criados entre os personagens. São pequenas fusões invisíveis, que existem nas amizades, nas famílias, na saudade, ou simplesmente no anseio das personagens mais solitárias em se conectar. Nada mais humano que isso.

4. Mostra o poder da ficção e da arte para fortalecer esses laços

Parece um detalhe, mas o que fez a história parecer ainda mais verdadeira para mim foi a presença da ficção. Aqui, no mundo real, estamos sempre assistindo a alguma série, vendo filmes, comentando sobre algum livro que lemos.

Uma história ambientada na Terra estaria falhando se deixasse de retratar isso; mas, no mundo de Steven Universe, a ficção está lá: por mais que se trate de um personagem, Steven também gosta de se emocionar com personagens fictícios — desde o samurai Espada Solitária até as Comidas Choronas, ou mesmo o Cachorrocóptero.

Não foram poucas as vezes, inclusive, que essas histórias e personagens foram determinantes para o rumo de alguns episódios. As histórias influenciam Steven, assim como nos influenciam e têm o poder de nos ensinar sobre nosso mundo e sobre nós mesmos.

O mais importante é que essas histórias têm o poder de nos unir.

Isso fica claro quando vemos Steven assistir a filmes ao lado das Crystal Gems; ou quando o Sr. Universo e Ametista reencontram as fitas de um antigo seriado que costumavam assistir, O Pequeno Mordomo, e resolvem maratonar todos os episódios, perdendo a noção do tempo; ou quando os jovens de Beach City formam um clubinho para assistir a filmes de terror; ou ainda quando vemos Steven e Connie tantas vezes conversando sobre o livro Um familiar desconhecido e os outros da saga protagonizada por Lisa e seu falcão.

Rebecca Sugar é uma compositora de mão cheia e a música é parte fundamental do desenho também neste sentido: a arte como formadora de conexões. 

Foram muitas as ocasiões em que os personagens se encontraram na música ou através dela, cantando ou compondo juntos, ou ainda encontrando motivação e significado para seus sentimentos através das canções.

Gosto que a música em Steven Universe não está lá gratuitamente, só para ser fofinha; assim como as inúmeras referências à literatura, ao cinema e à cultura pop, a música acrescenta significado à história.

E, num interessante jogo de metalinguagem, Steven Universe mostra como a ficção é importante para criar e fortalecer nossas relações, assim como ele próprio acaba sendo um exemplo de história capaz de unir as pessoas num mesmo universo.

Afinal, parece que algo mágico acontece quando alguém diz que também assiste Steven Universe: é mais alguém com quem posso conversar sobre esse desenho maravilhoso e sobre tudo o que ele me faz pensar.

Porque mesmo entre pessoas que já conhecemos sempre é possível criar novas conexões, quando usamos a ficção — mesmo um desenho animado! — como trampolim para alcançarmos uns aos outros.

Agradecimentos a Bruna pelas insistentes recomendações. Você tem parte da culpa desse texto gigantesco, ok?