Uma leitura de A Zed & Two Noughts, filme de Peter Greenaway
Nesse Zoo as espécimes raras são os zóologos. Primeiro que são irmãos: um tem tesão em registrar o processo de decomposição dos bichos, o outro come vidro e curte ficar pelado com caramujos. Ou quem come vidro é o maluco que faz timelapse de carcaça? Difícil dizer, os dois são iguais — e até um tico a cara do Christian Bale.
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Oswald e Oliver, os dois O’s do Zoo. Aí que as esposas dos dois morrem no mesmo acidente, envolvendo um cisne (fêmea, cheia de ovos) e uma mulher chamada Leda ao volante, que na verdade chama Alba (não pergunte), cujo maior desejo era ter 26 filhos e nomear cada um com uma letra do alfabeto grego (que tem 24). Vishe. E lá vem filme enfiado de simbologias e easter eggs mitológicos — deixa eu me aprumar para não perder as referências e ficar boiando depois.
Não adiantou: fiquei boiando mesmo assim.
Mas entender é uma experiência superestimada. Preferi embarcar no surrealismo da estética e do diálogo, o que me levou para bem perto da experiência de apreciação de teatro independente, inclusive pela presença frequente de pirocas em aparições meramente artísticas.
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Alba que é Leda perde um bebê e uma perna no acidente, mas não perde tempo em pegar os dois maridos das amigas que morreram no carro que dirigia. Os dois ao mesmo tempo, inclusive. É porque o filme insiste nas simetrias: dois amantes, dois pais, gêmeos siameses, reflexos no espelho, animais preto e branco, listras, preso e solto, vivo e morto. Uma coisa com dois.
Por isso parece natural aceitar que a solução para a perda da mulher é amputar a outra perna. Questão de equilíbrio, o médico diz. Pelamor, esse doutor é capaz de receitar amputação para qualquer sintoma leve de gripe.
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Nessa história, por outro lado, Vênus De Milo tem os dois braços. Encantadora personagem: puta, posa para um dos irmãos, costura roupas de desenho especial sobre encomenda e ainda conta histórias fantásticas para seus clientes por 25 libras o conto.
Um cadáver de filhote de jacaré custou 40 libras.
Tudo o que Vênus De Milo quer é ser publicada. Ela é uma mulher simples, consigo me identificar com ela.
Tudo o que os irmãos querem é ficar juntos, isso também consigo entender — além, é claro, de assistir ao lento processo da morte corroendo a simetria do que já foi vivo. Luto mal resolvido?
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Tem algo de sedutor em assistir à decomposição da matéria. O corpo virando alimento para outras criaturas, ficando irreconhecível. A morte devora.
Alba também vai sendo mastigada aos poucos, um pedaço de cada vez. Os irmãos doideira ficam curiosos em saber o que o efeito da morte faria no corpo da mulher. Eles levam esse fetiche muito a sério.
Vivos já perdemos pedaços. Como um zoo que vai ficando sem bichos, patético. O quanto você pode perder de si e ainda se reconhecer?
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