Genial foi o episódio do Chapolin em Acapulco, que conseguiu descrever com exatidão o que seria viver em 2019. Lembra? Tinha um pessoal tentando fazer um filme, mas ficção e realidade se misturavam o tempo inteiro. Sempre aparecia alguém para atrapalhar as filmagens: uma garota que assediava os famosos gritando por autógrafos, ou um doido que acreditava ser o Homem Nuclear e enchia os atores de porrada.
O Homem Nuclear corria em câmera lenta, tinha o braço biônico e era capaz de aguentar o peso de uma tonelada. Era no que ele acreditava. Na verdade, ele era o Senhor Trocadeiro, um louco perigoso, de acordo com a enfermeira que cuidava dele.
“Para que o louco não se enfureça, não pode contrariá-lo, tem que imitá-lo, etc etc”, ela advertia.
O Homem Nuclear se sentiria muito à vontade por aqui. Teria milhares de seguidores, até. O pessoal que mora nesses tempos não pode ver uma pessoa ensandecida cheia de ideias bizarras e descoladas da realidade que, em vez de questioná-la, começa a imitá-la.
Por isso não me espanta que uma galera acredite a sério que nosso planeta seja plano, batendo o pé contra toda e qualquer evidência que aponte para a redondeza gigante sob nossos pés.
Afinal, antes de vivermos na Terra, vivemos presos num mundo muito particular: a nossa mente. E a de alguns é mesmo achatada.
NO ENTANTO, como a Terra é redonda, o buraco é mais embaixo: existe aí também a vontade de experimentar um poder, o de achatar a Terra usando apenas a linguagem. Tal qual o Homem Nuclear faria, a verdade que vale é aquela que mora dentro da nossa cabeça. Se eu disser que é, será.
E se a Terra for uma rosquinha? Só não encontraram ainda o buraco, mas ele DEVE estar em algum lugar. Eles só não querem que você saiba.
Enquanto me ocorre essa possibilidade, penso que uma rosquinha seria muito mais plausível que uma panqueca; além disso, eu bem poderia alardear que a Terra é recheada de queijo, pimenta e linguiça, e isso teria zero efeito sobre o atual funcionamento e formato do planeta.
NO ENTANTO, se eu acreditasse nisso, que a Terra tem o mesmo recheio de uma pamonha salgada mineira, talvez eu me sentisse mais confortável em viver aqui. Quem sabe?
Apenas para aprofundar a tridimensionalidade dessa questão (sorry), o documentário Behind the curve mostra que o terraplanismo vai muito além do formato da Terra e de uma total reformulação da dinâmica do Universo. É uma busca por conexão.
O melhor trecho é quando os dois terraplanistas, Mark e Patricia, vão visitar o centro espacial da NASA e tiram onda que o simulador está quebrado. Eles se afastam e o cinegrafista filma, ao lado do assento, um enorme botão verde de START que os dois ignoraram. Isso é poesia.
Acho esse trecho especial sobretudo porque é fácil ignorar evidências óbvias quando toda a sua atenção está no alvo do seu desejo. Mark estava vivendo um encontro com a Patricia, seu crush; ela, por sua vez, falava com a câmera o tempo todo, para seus seguimores. Que a Terra seja plana para que esses momentos sejam possíveis!
Vê se isso não é um pouco comovente. O biruta mor, Mark, alimenta essa teoria porque gosta de ser famoso, de ser reconhecido, de pertencer. Isso e tentar pegar a Patricia, claro. A carência desse homem é gritante.
Não que ele seja muito diferente do restante de nós. Grudados nos celulares, criamos nossa imagem de Homens e Mulheres Nucleares para o mundo.
Aí entra a tiete maluca interpretada pela Chiquinha nesse episódio emblemático: o culto à celebridade. A fama como forma de estabelecer conexões, de se sentir aceito. Mark, o terraplanista, que o diga. Mas quem pode receber essa atenção? É preciso se diferenciar. Ser especial de alguma forma. Inspiradores. Fortes. Bonitos.
Há um poder imenso em se inventar, protegidos por avatares que disparam frases sagazes ou por selfies com ângulos escolhidos com cuidado. Tudo de mentirinha, como a pedra de isopor que o Seu Madruga ergue com um só braço para parecer mais forte.
O problema de acreditarmos demais nesse personagem é que ele não se sustenta por muito tempo fora da tela. Conheci gente que fazia tanto esforço para não quebrar a imagem de legalzão que criou na internet, que ao vivo só conseguia ser um tédio. Aquele medo gigantesco de sair do script. Sendo bidimensional, é mais fácil agradar.
Na tela, todos ficamos achatados.
Começo a achar que os terraplanistas têm alguma razão. Se a Terra não é plana, pelo menos seus habitantes estão muito próximos de ser.
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