O ano da narrativa

Não há mais tempo para inventar moda este ano; já estou em modo 2019, a cabeça já existindo no futuro, porque o que resta de 2018 é uma pontinha que tenho que segurar entre os dedos com cuidado, para eu conseguir terminar o que ficou inacabado, antes que o restinho esfarele entre os dedos.

Novembro é a sexta-feira do ano. Aqui parece o lugar perfeito para fazer aquele balanço maroto que a minha chefe cobra todos os anos. O fato de ela existir apenas na minha cabeça não a torna menos exigente. Em 2017, ficou insatisfeita com o saldo geral; dessa vez, ela não tem muito do que reclamar. Arregacei as manguinhas, fiz acontecer, e apesar do cenário caótico geral (o fascismo foi celebrado com dancinhas coreografadas e venceu graças ao medo generalizado de hipotéticas mamadeiras de piroca), tive um ano frutífero — produtivo não me parece a palavra certa, porque mesmo os acontecimentos que não me ajudaram a produzir, no sentido utilitário da palavra, ajudaram a me desenvolver.

A Gaía Passarelli escreveu um resumo que bate com o que vivi do lado de cá:

Aqui pessoalmente 2018 foi um ano ruim (alô, Fante?) mas também foi bom no sentido de que, regido por Xangô e Iansã, umas ilusões caíram e mudanças profundas aconteceram. Vem aí um ano de Ogum: quem deve paga, quem merece recebe.

Por aqui, ilusões também caíram e mudanças profundas aconteceram. Celebro isso como um ponto positivo. Foi difícil, mas foi bom. Talvez Iansã tenha algo a ver com o vendaval que passou por aqui, mas atribuo essas mudanças drásticas & queda de ilusões à psicanálise, que comecei esse ano.

A verdade é que passei todos esses anos no escuro e, pela primeira vez, comecei a ver o contorno e a dimensão das substâncias que me compõem. Ao mesmo tempo em que pude ver com mais clareza, minha própria narrativa foi despedaçada diante dos meus olhos. Menos mal: narrativas a gente ressignifica e reconstrói. As ferramentas que vou usar para esse trabalho são minhas velhas conhecidas, e com elas me sinto à vontade. Palavras. É só disso que preciso.

No meio de tudo isso, terminei mais um romance. Título provisório: Cidades afundam em dias normais. Engraçado é que tenho falado dele como se fosse algo certo, mas a verdade é que nem sei se um dia será publicado. Sei lá, precisa? A jornada aconteceu, foi real, independentemente de terminar embalada numa capa brilhante, recheada de cheiro de papel, nas prateleiras de alguma livraria. Escrevi pra mim, isso é o que importa; fiquei satisfeita com a forma que resolvi a história (apesar de ainda querer mexer numa coisa aqui, noutra ali), e com o que a história ajudou a resolver em mim.

Apesar de ter decidido dar um tempo com o projeto que me tomou 2017, a zine mensal Bobagens Imperdíveis, continuei a fazer zines e a publicar do meu jeitinho. Sem pedir autorização a ninguém.

Publiquei quatro zines e ainda tirei mais um livro do chapéu: Bobagens Imperdíveis para ler numa manhã de sábado, que no momento está quase pronto para ir para a gráfica. O livro é uma pequena coletânea com os melhores textos dos primeiros anos de newsletter, versão reeditada e ilustrada, especialmente projetado para caber em uma manhã preguiçosa de sábado.

Quando estou imersa no puta-que-pariu da produção, é fácil me menosprezar e achar que não estou fazendo o suficiente, ou que não estou conseguindo, baseada em métricas que sequer são minhas, e assim perder de vista que estou realizando algo grande. Grande como as coisas das quais precisamos pegar distância para conseguir vê-las em sua totalidade; e essa distância é o tempo. Meu trabalho está na consistência. Ainda que na maioria das vezes seja difícil enxergar, estou no caminho certo. Isso é algo.

Participei de dois eventos literários importantes: a Bienal de Brasília, onde conheci a grande Ana Maria Gonçalves, e a Bienal de São Paulo, onde um leitor querido veio de Tocantins só pra me ver e me deixou emocionada. Participei de debates sobre ficção científica e meu livro As águas-vivas não sabem de si esteve em diversos clubes de leitura pelo Brasil. Caramba, e tive um conto publicado na Dragão Brasil (#135). A Aline adolescente teria um treco se vislumbrasse esse tiquinho de futuro.

Fiz novos amigos e conversei com muita gente bacana. Saí do casulo para me reconhecer na história de tantas pessoas; fui convidada, com muita generosidade, para fazer parte da história de outras. Aprendi demais com todas.

Dei uma oficina online sobre criatividade e uma presencial, no SESC da Avenida Paulista, sobre zines. Descobri que eu tenho capacidade de ensinar — e que eu tenho o que ensinar —, o que me abre a portinha para fazer mais disso nos próximos anos.

Em 2018, pude viver de escrita. Não dá para saber ainda se em 2019 vou conseguir, ou se será o ano em que mudo de carreira (de novo), porque nunca dá para saber, risos. Mas este ano, apesar de algumas dificuldades, rolou de me bancar com meu trabalho na escrita e na ilustração. Que bom. Não sei em que ano volto a ler esse texto, mas quero que você (do futuro) lembre-se do ano em que você conseguiu.

Os dias são feitos, muitas vezes, de uma tristeza profunda, de frustrações ou simplesmente de tarefas inacabadas porque faltou tempo ou energia ou planejamento. Mas um dia não é um ano, muito menos uma vida; o dia nasce, o dia morre, e ele deixa uma marca do tamanho de um grão. O ano é sim, feito desses dias de incertezas e sofrimento, mas ele é granulado, cheio de texturas. Dando um ou dois passinhos para trás, é possível ver com clareza o quadro inteiro. E que bonita é a imagem que ele forma.

A principal lição que 2018 me deixa é a de que sou a única no controle da minha história. Mais ninguém. Às vezes, a mudança mais profunda que um ano deixa é uma mudança de perspectiva. Ver a história de um outro ângulo, sem os filtros da autocrítica massacrante, dos objetivos que não me pertencem. Um ângulo onde eu seja mais gentil comigo e com o que eu faço.

Tudo é uma questão de narrativa.


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